22 de setembro é o Dia Mundial Sem Carro. A intenção é que deixemos o carro na garagem nesse dia e que utilizemos meios coletivos de transporte. Algo bastante possível e que mostra que o automóvel é muito útil mas não é imprescindível. Na verdade, com bom senso, o carro pode ser reservado às atividades mais nobres (como, por exemplo, o turismo). Seguindo essa mesma linha de raciocínio, dias mundiais sem “outras coisas” seriam possíveis?
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O “Dia Mundial Sem Carro” diz muito sobre o modo como nos relacionamos com a tecnologia e, de um ponto de vista mais amplo, sobre o modo como vivemos!
O dia 22 de setembro está agendado para ser o Dia Mundial Sem Carro, o World Car Free Day. É um movimento que surgiu no final do século XX e vem encontrando cada vez mais adeptos por todo o mundo. É um movimento surgido principalmente pelas consequências sociais e ambientais associadas ao uso intensivo do automóvel em grandes centros urbanos em detrimento de suas alternativas coletivas.
Existem atividades planejadas para conscientizar os usuários de automóveis sobre uma possível “dependência excessiva” do automóvel e para conscientizar os usuários que algumas viagens podem ser mais rápidas se efetuadas por outros meios de transporte, como o metrô e os ônibus coletivos por exemplo na maioria dos casos em grandes centros urbanos.
Esse movimento tem como objetivo conscientizar sobre os grandes danos ao meio ambiente provocados pelo uso intensivo de automóveis. Em algumas grandes cidades, com altos índices de motorização, as quantidades de poluentes encontrados no meio ambiente e associados às emissões de automóveis atingem valores absurdamente altos.
As atividades não visam limitar a mobilidade das pessoas, mas contribuir para que abram suas mentes para alternativas ao automóvel. Várias viagens podem ser feitas de bicicleta ou através de algum meio de transporte coletivo. E mesmo um uso mais consciente do automóvel, evitando as viagens com apenas um passageiro, podem ser toleradas.
É importante ressaltar que também é necessário restringir o uso de caminhões e outros tipos de veículos associados ao modal rodoviário para distâncias continentais, como se vê no Brasil, para o qual poderiam ser adotadas alternativas economicamente mais eficientes. Existe atualmente uma concentração excessiva e economicamente prejudicial nesse modal.
As emissões são excessivas pela grande quantidade de veículos rodando pelo País, se pensarmos no caso específico do Brasil, tanto automóveis e utilitários quanto caminhões. As emissões também (e talvez principalmente) são excessivas pela grande quantidade de veículos que circulam com excesso de peso e fora de condições ideais de utilização e manutenção.
Mas o Dia Mundial Sem Carro também pode servir para outras reflexões!
O automóvel no nosso mundo moderno está bastante associado à independência pessoal e à liberdade. É inegável que a disponibilidade de um veículo confere uma valiosa autonomia à vida de qualquer pessoa. Seus negócios e seus contatos podem ser ampliados, dependendo de suas atividades profissionais e de interesses pessoais, ampliando bastante seu raio de influência.
E essa autonomia se reflete também na economia, tanto pela própria produção industrial dos automóveis, já que mais e mais pessoas vão desejar ter seus próprios automóveis, quanto pela sua influência direta na economia, levando e trazendo pessoas e movimentando os negócios. Mas esse incremento da economia, a bem da verdade, também será possível se houver uma rede de transportes eficiente. Ainda mais com os avanços tecnológicos que permitem contatos a distância!
O uso indevido desse bem pode levar a conseqüências negativas e esse uso indevido aparece de modo mais dramático na quantidade de automóveis que circulam conduzindo apenas uma pessoa. É claro que as viagens individuais sempre deverão ser possíveis, mas as viagens com duas ou três ou mais pessoas, quando estiverem se dirigindo a um mesmo objetivo, e ainda mais se ocorrerem durante horários de pico de uso de vias e rodovias, deveriam ser privilegiadas.
À direita, um exemplo de placa de sinalização de trânsito indicando que na via em questão devem transitar apenas veículos levando dois ou mais passageiros.
É muito difícil limitar essas “viagens solitárias” tentando conscientizar as pessoas sobre a necessidade de evitar esse uso indevido, até porque ele se coloca contrário as benesses argumentadas em favor dos automóveis no momento de sua comercialização. Um sistema moderno e equilibrado de transportes, entretanto, seria capaz de tirar os “motoristas solitários” de seus automóveis e colocá-los em transportes urbanos coletivos.
Quando um automóvel é vendido, o consumidor é levado a se sentir como um ser superior com capacidades sobre humanas para condução de um veículo que será o mais veloz de todos. Depois desse momento de ilusão, o consumidor deverá conviver, pelo menos no caso do Brasil, em ruas lotadas de veículos e que não recebem a manutenção adequada [calma lá, mas o carro não é um símbolo da liberdade pessoal, porque a minha liberdade é então tolhida nas ruas cheias de carros?], além de estar sujeito a multas caso ultrapasse os limites de velocidade [mas espere aí… de que me adianta ter um carro que pode rodar a mais que 200 km/h se eu não posso ir além dos 80 km/h?!].
Pois é… lembrando o que Morpheus disse a Neo no filme Matrix (“bem vindo ao deserto do real!”) logo após este ter acordado depois da decisão pela pílula vermelha, a realidade é dura e nos impõe um conjunto de limitações e de frustrações que só pode ser devidamente superado por meio de um enfrentamento honesto e aberto. (E, depois de escolhida a cor da pílula, não tem volta!)
O papel da tecnologia nesse contexto é justamente nos oferecer uma certa comodidade e mesmo um tipo de upgrade em qualidade de vida em relação ao que tínhamos antes dela. É por isso que tanto se fala sobre um futuro no qual teremos robôs capazes de fazer o trabalho duro em nosso lugar, permitindo que utilizemos o nosso tempo para tarefas mais nobres.
Nesse sentido, o dia mundial sem carro bem poderia ser chamado de dia mundial “de melhor convivência com a tecnologia”. Nós já temos tecnologias eficientes para várias coisas, mas quem sabe seja necessário ainda aprendermos a conviver melhor com essas tecnologias, ou por outro lado quem sabe seja mesmo necessário aprendermos o que vêm a ser essas tais “tarefas mais nobres”.
E estendendo essa reflexão para outros aspectos do nosso modo de vida moderno, o dia mundial sem carro, que como vimos bem poderia ser um dia mundial de melhor convivência com a tecnologia, poderia ser transfigurado em um dia mundial sem tantas “outras coisas”, cujo uso excessivo pode ter conseqüências tão devastadoras quanto o uso excessivo dos automóveis.
Seria possível que todos que consomem álcool em excesso ou fumo ou mesmo aqueles que assumem dietas excessivamente calóricas e que dizem “que algum dia vão largar”, conseguissem manter um dia de abstinência? E os que não tem consciência que precisam parar, conseguiriam ser atingidos por uma campanha por um dia de abstinência? Seria possível um “dia mundial sem álcool”? Ou algum dia mundial sem drogas?
E o que dizer das drogas cujo consumo não é permitido e mesmo assim avançam rapidamente entre os mais pobres e os mais jovens? Um “dia mundial sem drogas” teria consequências incalculáveis para o que se poderia chamar de “sustentabilidade social”. Um dia mundial sem drogas contribuiria para a solução de vários problemas estruturais do nosso modo de vida moderno.
As emissões dos automóveis e alguns de seus componentes que, depois de descartados, precisam ser reciclados, apresentam importantes impactos ao meio ambiente. Mas os problemas associados com o consumo de álcool e com o fumo, além de todos ps problemas associados com o consumo de drogas ilegais, muito além de questões relacionadas com o meio ambiente e com saúde pública, apresentam impactos diferentes mas que são igualmente importantes e que apresentam diferentes e complexos reflexos sobre a sociedade humana.
“Dias mundiais sem outras coisas” teriam conseqüências também para o que se pretende com o dia mundial sem carro.
Desse modo, em suma, deixar o carro na garagem até pode parecer fácil.
Dias mundiais “sem tantas outras coisas” seriam possíveis?
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Este texto também foi publicado (parcialmente) pela seção dedicada à sociedade do blogue português Obvious Magazine como dias mundiais “sem tantas outras coisas” seriam possíveis?