Em tempos de globalização, e de grandes quantidades de informação disponível a qualquer pessoa, é primordial selecionar o que é realmente importante. Nem sempre as informações são obtidas ou geradas com a consistência e coerência necessárias. Aí, se pode aplicar as sugestões de um livro lançado ainda nos anos 80, que sugere três filtros contra a insensatez.
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A vida se mostra, por vezes, bastante complicada. As pessoas nem sempre são confiáveis. Muitas vezes, mostram “duas caras”. As informações disponíveis, muitas vezes, são falhas ou mesmo incorretas. Muitas vezes, ainda, são falsas. Os caminhos mais fáceis, nem sempre, são os melhores. O que é dito ou escrito, muitas vezes, traz outras interpretações em suas entrelinhas.
Atualmente, a grande quantidade de informações disponíveis exige o domínio de ferramentas para seleção daquelas que são efetivamente relevantes. Além disso, a informação disponível nem sempre foi gerada com a consistência ou com a coerência desejadas. É necessário, portanto, avaliar quantidade e qualidade. Esse panorama exige uma postura ativa em relação a tudo que chega até nós, por vários meios.
Muitas pessoas reclamam a falta de um “manual de instruções” que mostrasse como contornar certas dificuldades da vida. Mas, um manual de usuário traria a opinião de quem o escreveu, pelo menos na maioria dos casos. Parece melhor que sejam construídas ferramentas, para que cada pessoa possa aplicar do modo que lhe for conveniente, no momento que for considerado adequado.
O livro Filters Against Folly: How To Survive Despite Economists, Ecologists and the Merely Eloquents, de Garrett Hardin, lançado em 1985, discute a distância entre o que é dito ou escrito de fato e o que se pretende dizer e sugere um conjunto interessante de três filtros a serem aplicados a qualquer situação. O título significa “filtros contra a insensatez” seguido do sugestivo subtitulo “como sobreviver apesar de economistas, ecologistas e eloquentes”.
Mas o que é um filtro? Qualquer dicionário diz que um filtro é um dispositivo que seleciona o que passa por ele, deixando passar apenas o que não fica retido em sua malha, ou seja, o que não é filtrado. Como exemplos podem ser citados o filtro de café, que segura o pó quando se prepara a bebida, e os filtros eletrônicos, que em circuitos permitem a passagem de algumas frequências, retendo outras.
Os três filtros sugeridos pelo autor são os seguintes: um filtro para palavras, um filtro para números e um filtro final. O autor resume esses filtros com três palavras em inglês: literacy, numeracy e ecolacy, de difícil tradução para o português. Esses filtros podem ser aplicados a informações, a projetos, a proposições etc.
O filtro para as palavras, ou literacy, em inglês, sugere a aplicação da pergunta “o que dizem as palavras?” Esse filtro sugere que a apresentação escrita de determinado problema ou projeto ou proposição seja avaliado com cuidado. E sugere que sejam procurados armadilhas ou significados que estejam escondidos no texto.
O filtro para os números, ou numeracy, em inglês, sugere a aplicação da pergunta “o que dizem os números?” Esse filtro sugere que a apresentação de determinado problema ou projeto ou proposição tenha suas quantidades avaliadas com cuidado. As dimensões relativas dos números devem ser avaliadas.
O filtro final, ou ecolacy, em inglês, sugere a pergunta “e então?” Esse filtro sugere, por fim, que após a aplicação dos filtros anteriores e considerando seus resultados, seja aplicada uma avaliação com um ponto de vista geral e amplo. O que dizem as palavras? O que dizem os números? E em que contexto esses significados se inserem.
Esta sequência seria inclusive a mais lógica para sua aplicação. Primeiro, devemos ler uma determinada proposição. Depois devemos buscar os números nessa proposição. E, por fim, devemos juntar as interpretações construídas nesses dois passos com nossa experiência prévia e formar um julgamento final.
Vamos considerar um exemplo. Um cidadão estuda a aquisição de um automóvel sem ter todo o dinheiro necessário para a compra a vista. A concessionária oferece um financiamento do saldo devedor com uma taxa de juros de digamos x% ao mês. O banco desse cidadão oferece uma linha para aquisição de automóveis com uma taxa de y% ao mês. O que dizem as palavras? Esse cidadão estará assumindo um novo compromisso, uma decisão que precisa ser vista na perspectiva de outros já existentes em sua agenda financeira. O que dizem os números? É necessário avaliar qual das duas taxas é melhor, é necessário calcular quanto essas taxas representam anualmente e quanto em valor absoluto essa taxa vai agregar ao valor final pago pelo automóvel em questão. E então? É necessário avaliar que utilidade terá esse automóvel, se ele vai ser o automóvel principal da família ou se será usado como carro de reserva ou por um dos filhos. Conforme sua utilidade, pode ser interessante deixar a aquisição para quando esse cidadão tiver o valor para pagamento a vista.
O livro é bastante voltado à atuação do autor como um ecologista ativo e questionador. Ele nasceu em 1915 e faleceu em 2003, tendo publicado (entre vários artigos e livros de uma longa e produtiva carreira acadêmica) um artigo na revista Science em 1968 no qual discute a questão de que não será possível alcançar uma sustentabilidade plena para o nosso modo de vida.
O terceiro filtro, ecolacy, na verdade, sugere literalmente que sejam avaliadas interações complexas ao longo do tempo, nitidamente associado à sua aplicação a processos ecológicos. O autor sugere iiteralmente o seguinte: “[it] can allow anyone to make sensible judgements about ecological issues – even in the face of a barrage of confusing expertise”.
O subtítulo do livro inclui economistas porque em várias circunstâncias eles são forçados a apresentar uma justificativa pública de suas decisões que muitas vezes se distancia de seus atos concretos. Muitas vezes uma medida impopular mas necessária precisa ser “embalada” em um rótulo que conduza a economia em uma direção pretendida, sem revelar decisões com possíveis consequências indesejadas.
O subtítulo também inclui ecologistas. O próprio autor era um ecologista, mas conforme o livro, ele era como uma “ovelha negra”. Ele sempre se mostrou crítico de campanhas ecológicas menos importantes ou não relacionadas diretamente com preocupações de longo prazo. O subtítulo ainda inclui “os meramente eloquentes”, aqueles que falam sem qualquer compromisso com a realidade.
Vamos considerar um outro exemplo. Em algumas circunstâncias, ouve-se a seguinte frase: “a água vai acabar”! Pois bem… o que dizem as palavras? Em qual cenário a água vai terminar? É possível que a água de fato termine? Em um cenário global, ou melhor, em um cenário planetário, a água não vai terminar. Não existe um vazamento de água para fora da atmosfera que justifique essa preocupação. O que diriam os números? Em um cenário planetário, a quantidade de água vem se mantendo constante há alguns milhões de anos. Ela se distribui ao longo do planeta em seus três estados físicos, armazenada em vários tipos diferentes de reservatórios. Existe água no mar, com grande quantidade de sais; existe água nas geleiras, em estado sólido; existe água sobre os continentes, em grande parte na forma líquida. E então? Essa afirmação está relacionada às preocupações quanto à qualidade da água disponível naturalmente para consumo. Com o tempo, tende a reduzir a quantidade de água disponível na natureza em condições de potabilidade.
A ideia deste livro, então, e a ideia de se aplicar esses filtros, é que seja possível alcançar uma visão mais ampla do cenário. Uma visão a partir de um ponto de vista diferente já contribui para melhores decisões. Uma visão construída a partir de vários pontos de vista diferentes se mostra muito positiva e construtiva no sentido de decisões mais amplamente abrangentes.
Três filtros então… [1] literacy, ou o que dizem as palavras?
[2] Numeracy, ou o que dizem os números?E… [3] ecolacy, e então?
“Ah… se eu soubesse desses filtros há mais tempo!”
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Este texto também foi publicado (parcialmente) pela seção dedicada à literatura do blogue português Obvious Magazine como três filtros contra a insensatez que todos deveríamos saber.